A economista goiana Ana Carla Abrão Costa deixou a Secretaria da Fazenda do seu Estado no final do ano passado, mas não se afastou por completo do setor público. Em São Paulo, onde voltou à iniciativa privada como sócia da consultoria britânica Oliver Wyman, passou a presidir o Conselho de Gestão da Fazenda da capital paulista, após declinar o convite do prefeito João Dória Jr. para chefiar a pasta. E, como consultora, deve tocar também projetos para a administração pública. Experiência não lhe falta para atuar nas duas esferas. Sua trajetória profissional abrange passagens diversas na área financeira, no extinto Banco Brasileiro Comercial (BBC), que foi de seu pai, no Banco Central, além do banco Itaú e da consultoria Tendências. Por seu período na Fazenda goiana, no meio da pior recessão da história, Costa vê um amplo espaço para avançar na gestão estatal e tira sua impressão mais dura sobre o Brasil: “Infelizmente, o País está dominado pelas corporações” Leia a seguir a entrevista:

DINHEIRO – O Rio de Janeiro está fechando os últimos detalhes para aderir à Lei de Recuperação Fiscal. Vai resolver o problema?

ANA CARLA COSTA – A questão era tão grave que chegou num beco sem saída. O grande problema é que existe um momento – e ficamos perto disso em Goiás – quando se perde a capacidade de gerir o caixa, como foi no Rio. Os recursos são sequestrados ou pelo Tribunal de Justiça, que fala que tem de pagar os salários dos desembargadores; ou pelo Ministério Público, que fala que os promotores têm de receber auxílio-moradia; ou pelo governo federal, que tem, legitimamente, garantias. O Rio chegou nesse ponto. O governador já não tinha mais a capacidade de tentar uma saída. O Programa de Recuperação Fiscal vai devolver isso. Vai resolver? Não, porque o problema é estrutural, que vai levar muito tempo para ser resolvido. Não é prerrogativa do Rio. Todos os Estados têm problemas estruturais.

DINHEIRO – Algum outro Estado corre o risco de ser o próximo Rio de Janeiro?

COSTA – Os que claramente entraram numa situação de colapso são Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Podem ter outros. O calendário eleitoral infelizmente coloca uma pressão de desequilíbrio muito grande, que já começou em vários deles. Estão de novo entrando num processo de ampliação de gastos. Ou seja, podemos, sim, ter outros Estados com problemas, que vão bater no Tesouro Nacional e fazer uso da lei de recuperação, mas nada na magnitude dos três que já apareceram.

DINHEIRO – Saberia nomear quais?

COSTA – Não, porque hoje há um grande problema: as estatísticas fiscais dos Estados são pouco confiáveis. Não porque sejam feitas de forma errada. É que cada um tem o seu critério, cada tribunal de contas aceita uma forma.

DINHEIRO – Isso é bastante sério, não?

COSTA – O problema dos Estados não será resolvido enquanto não houver números comparáveis e que de fato representem a realidade. O problema hoje é apenas uma linha, a despesa com pessoal. Cada um faz a contabilidade de uma forma diferente: boa parte do que deveria estar ali, não está. Está em custeio, nos outros poderes, não há clareza. Ninguém sabe o tamanho da previdência nos Estados.

DINHEIRO – Após o impeachment, havia uma expectativa de que os tribunais de contas fossem mais rígidos.

COSTA – Não é o que está acontecendo. Em Goiás, passei dois anos pedindo que considerassem nas despesas com pessoal o Imposto de Renda Retido na Fonte e os gastos com pensionistas. O Tribunal de Contas interpreta de forma errada. Diz: retira isso. Quando colocamos todos os penduricalhos, auxílios moradia, paletó, não tenho dúvida que rompe o limite obrigatório. Na verdade, Goiás gasta 78% da receita líquida com pessoal. O limite da lei é 60%. Pedia ao TCE que alterasse essa interpretação, mas diziam não ter sentido. Ao contrário do amadurecimento que se esperava, o TCE quer se proteger. Hoje, os outros poderes [além do Executivo] são os que mais agridem a Lei de Responsabilidade Fiscal.

DINHEIRO – Deu para ter clareza sobre a previdência em Goiás?

COSTA – Não, porque a dos outros poderes só foi unificada agora. A partir de agora, é que se vai ter clareza do tamanho do déficit.

DINHEIRO – Não parece errada a visão de que a previdência é uma caixa preta nos Estados…

COSTA – Sem dúvida. Só temos certeza de uma coisa: o problema é muito grande. Não sabemos o número, mas que é muito grande, não há dúvida.

Tropa de choque em protesto de servidores públicos contra o ajuste fiscal no Rio de Janeiro (Crédito:Fernando Frazão / Agência Brasil)

DINHEIRO – A Lei de Responsabilidade falhou?

COSTA – Do ponto de vista da dívida, não. Do ponto de vista de despesa com pessoal, foi ficando obsoleta. Foi perdendo a capacidade de deixar claro que o limite era importante. Na medida em que faz de conta que está sendo cumprido, mas não está, aí os problemas começam a aparecer. O limite é para inglês ver.

DINHEIRO – O caso dos passaportes jogou luz sobre Brasília. A União pode ser o Rio de Janeiro de amanhã?

COSTA – Sempre pode. Se não fizer a reforma da Previdência, seremos todos um Rio de Janeiro amanhã. No caso dos passaportes, eu sou crítica. Quando há um contingenciamento, porque há uma meta a cumprir, o que o gestor do órgão faz. Olha e fala: de onde vou tirar o corte? De onde é absolutamente essencial. Não vou contingenciar nenhuma outra linha, mas essa aqui de passaporte. Vai faltar dinheiro e eu vou bater no Planejamento e dizer: se não fizerem suplementação orçamentária, vou parar de emitir passaporte. Em Goiás, fizemos um ajuste de R$ 3,5 bilhões num orçamento de R$ 20 bilhões. Não tem como dizer que não há espaço para cortar. É que a gestão pública no Brasil não está acostumada a cortar, a fazer gestão de custos.

DINHEIRO – Não há uma escassez de recurso de fato?

COSTA – A escassez de recurso é consequência da má gestão. Não falta dinheiro no setor público. Tem um desperdício enorme e uma alocação errada. Por quê? As corporações dominam. A grande reforma que precisa se feita é a do Estado. Há mais gente do que precisa, mais atividades do que precisa, uma máquina que consome recursos e não presta os serviços que deveria.

DINHEIRO – Seria algo como uma reforma administrativa?

COSTA – Chamo de reforma do Estado, porque vamos ter de discutir a estabilidade do servidor. Não digo acabar, mas deve haver uma forma mais eficiente de estabilidade. Tenho de poder mandar embora o auditor fiscal que é corrupto, um servidor que não trabalha.

DINHEIRO – O governo federal já chegou no limite dos cortes?

COSTA – Há espaço. Precisa fazer a gestão desse corte.

Equipe econômica do governo do presidente Michel Temer busca saídas para evitar revisar a meta de superávit fiscal deste ano (Crédito:Evaristo Sa / AFP)

DINHEIRO – A equipe econômica deveria, então, aguentar as pressões?

COSTA – É o discurso que estão fazendo, de que, se for necessário, vão cortar até despesas obrigatórias. Se não cumprir a meta, significa que o Brasil está de fato indo para o colapso, que vamos quebrar. Independentemente de mercado, a sociedade vai pagar. Ou com inflação ou com aumento de impostos.

DINHEIRO – Na sua avaliação, o governo vai aumentar impostos?

COSTA – Sim, acabará fazendo.

DINHEIRO – A senhora costuma separar o que é ideal do que é possível. O que é possível fazer hoje?

COSTA – É segurar a boca do caixa, ou seja, não deixar gastar. E essa é uma administração muito complicada porque vai exigir um desgaste da equipe econômica, que vai bater de frente o tempo todo, como está acontecendo agora com o caso da Polícia Federal.

DINHEIRO – A reforma tributária é defendida por todos, mas não avança. Como começará a tomar corpo?

COSTA – A reforma tributária está para o Brasil de hoje como o Plano Real estava para o Brasil da década de 1990. Assim como sabíamos que a inflação gerava distorções e perda de produtividade, sabemos que o sistema tributário é esquizofrênico. Precisa ser endereçada, mas não tem ambiente político. Não é uma agenda para agora.

DINHEIRO – Os governadores sempre se dizem a favor, mas quando vão negociar, resistem às mudanças.

COSTA – Há uma falta de política de desenvolvimento regional. Para Estados periféricos, como Goiás, é complicado dizer “vamos tirar o benefício de ICMS, não vamos colocar nada no lugar e ver como as coisas acontecem.” É muito arriscado. Quem me garante que as empresas não vão embora?

DINHEIRO – Qual é a solução para esse impasse?

COSTA – Alguma margem para os Estados darem incentivos vai ter de existir, mas tem de ser dentro de uma estrutura tributária que faça sentido, porque a atual criou um monstro com 27 legislações diferentes. E, sinceramente, eu que vim de Goiás, que é sem dúvida o mais ativo em incentivos fiscais, confesso que tem situações em que olho e claramente falo que passou do limite. Não tem avaliação de impacto e não tem mais clareza de quanto é um incentivo necessário para atrair uma empresa e mantê-la lá e quanto é leilão, quanto é aumento de margem. No fundo, está todo mundo perdendo.

DINHEIRO – O projeto de renegociação das dívidas dos Estados não era uma oportunidade para iniciar esse avanço?

COSTA – Tentamos. Ficamos bem próximo de resolver, de uma forma meio atabalhoada, mas pelo menos convergir as alíquotas. Aí veio a crise e os Estados entraram num colapso, que tirou o foco, porque ninguém queria mais saber de ICMS, só de pagar a folha de pagamentos. A discussão se perdeu e agora ficou mais complicada porque o projeto de convalidação [perdão] dos incentivos está sendo aprovado. O problema é que, infelizmente, estamos na mão das corporações e aqui estamos falando de um lobby pesado. Infelizmente, o País está dominado pelas corporações.

DINHEIRO – Como a senhora imagina que deveria ser o debate econômico na campanha presidencial de 2018?

COSTA – Certamente devemos ter aprendido alguma coisa com a campanha de 2014. Espero e acredito que será um debate mais claro, de apresentar qual é a agenda, seja de uma reforma política, tributária, uma reforma de Estado… Já estou botando a da Previdência em 2019 (risos). Vai ser uma eleição binária. Tem agendas muito claras, uma mais populista, de baixar juro à força, dar subsídio, fazer política industrial… E vai ter uma agenda responsável e dura. Vai ser uma eleição que vai determinar que caminho tomaremos, o da continuidade das reformas ou de volta ao atraso que vivemos nos últimos anos.