Intervenções Públicas

Síntese de declarações à imprensa do Governador Vítor Constâncio a propósito da crise do crédito hipotecário de alto risco (subprime) nos Estados Unidos
Razões e consequências da crise do subprime

A crise do crédito hipotecário de alto risco (subprime) nos Estados Unidos não tem assumido proporções maiores do que se previa, mas os excessos cometidos e a distribuição do risco por muitos agentes em vários países que compraram títulos e instrumentos derivados associados a esse crédito criaram um problema de falta de informação sobre quem é que vai suportar as perdas do incumprimento desse crédito imobiliário e sobre a dimensão dessas perdas. É isso que explica a quebra de liquidez em vários mercados.
A falta de liquidez de mercado, que não se deve confundir com liquidez monetária, consiste em não existirem ou serem escassas as transacções por falta de agentes financeiros dispostos a transaccionar a um determinado preço. A falta de liquidez neste sentido está ligada a uma quebra de confiança que se gerou essencialmente por faltar o tipo de informação referida. Existe também um efeito de contágio para outros tipos de instrumentos no contexto de um processo geral de revisão da avaliação do risco. Isto tem afectado segmentos importantes do mercado de títulos de dívida privada (a pública tem continuado a ter muita procura), desde o de papel comercial até vários tipos de obrigações.
A superação da falta de liquidez de mercado em todos estes casos depende dos agentes financeiros envolvidos na crise do crédito subprime americano começarem a divulgar as perdas que vão suportar e, em geral, recomeçarem as transacções após uma revisão do valor de activos e instrumentos financeiros. A confiança de ambos os lados do mercado tem que voltar a restabelecer-se, ainda que a outros preços. A situação acabará por normalizar, mas pode levar algum tempo.

Actuação do BCE

As intervenções iniciais do BCE normalizaram o mercado monetário interbancário até uma semana, tendo sempre conseguido trazer a taxa do overnight para valores próximos da taxa definida pela política monetária. Mas, visto que não tem existido uma transmissão para prazos mais longos, por não existirem agentes financeiros dispostos a transaccionar para essas maturidades, o Conselho de Governadores do BCE decidiu fazer uma intervenção extraordinária a 3 meses de 40 mil milhões de euros, realizada no final de Agosto, e no dia 6 de Setembro decidiu realizar outra na semana seguinte, sem fixar previamente quer a quantidade quer a taxa. O objectivo foi introduzir liquidez a prazos mais longos, de forma a estimular os agentes a recomeçar a transaccionar nesses prazos.
A responsabilidade de um Banco Central é manter em funcionamento o mercado monetário de curto prazo e temos feito o necessário para normalizar o segmento interbancário. Tendo em conta a turbulência dos mercados e a grande incerteza existente, o Conselho de Governadores do BCE, órgão que decide a política monetária, deliberou manter o nível das taxas de juro e «recolher informação adicional e examinar novos dados antes de tirar outras conclusões para a política monetária». Isto também contribui para assegurar aos mercados que o BCE não ignora as dificuldades da situação actual, sem prejudicar o cumprimento do objectivo, que lhe é definido pelo Tratado, de garantir a estabilidade dos preços na área do euro.
Em qualquer caso, a revisão em curso da avaliação do risco já implica um aumento do custo do financiamento e significa que acabou o ciclo do crédito fácil para agentes e instrumentos de mais alto risco.

Situação do sistema financeiro português

De acordo com o levantamento que o Banco de Portugal fez junto das instituições bancárias, a exposição, directa e indirecta, aos instrumentos associados ao mercado americano subprime não tem praticamente expressão no total do balanço do sistema bancário. O Banco de Portugal analisou também com as instituições bancárias a situação de liquidez, actual e previsional, bem como a dos respectivos mecanismos de gestão. Estes eram os aspectos imediatamente mais importantes a analisar. Evidentemente, a evolução dos mercados em geral e para além dos associados ao problema do mercado subprime poderá vir a revelar outros problemas de valorização de activos. De qualquer forma, as avaliações internacionais feitas recentemente aos bancos portugueses confirmam a sua robustez e capacidade de resistir a choques. É certamente isso que justifica que desde o início da turbulência actual os preços dos títulos emitidos pelos bancos portugueses tenham acompanhado estritamente a evolução dos índices médios do sector bancário europeu.
Temos insistido bastante na necessidade de manter a estabilidade financeira e a rentabilidade e solidez do sistema bancário. Momentos como este provam a importância desse objectivo. Felizmente podemos dizer que não existem outros factores específicos de preocupação no sistema bancário português que justificassem agora novas iniciativas.

Impactos nas economias portuguesa e europeia

As previsões que o Conselho de Governadores analisou na sua reunião de 6 de Setembro revelam um cenário central em que o crescimento da área do euro em 2007 e 2008 é revisto em baixa em apenas 0,1%. Os dados fundamentais que têm alimentado a recuperação económica europeia e portuguesa mantêm-se ainda. Ao contrário dos Estados Unidos, a Europa não tem um problema geral de incumprimentos e queda de preços no mercado imobiliário. Naquele cenário central, que implica a normalização do funcionamento dos mercados financeiros a curto prazo, a redução do crescimento seria, pois, muito ligeira e pouco relevante também para Portugal.
No entanto, é importante sublinhar que se acentuaram os riscos em torno do cenário de base, porque a normalização dos mercados pode levar mais tempo, ou porque a desaceleração económica americana pode revelar-se mais acentuada, com efeitos negativos no crescimento mundial, ou ainda porque o aumento da aversão ao risco pode exceder o previsto e conduzir a condições financeiras menos favoráveis ao crescimento. Portugal está muito dependente do que ocorrer na economia mundial e, em particular, na europeia, não existindo factores específicos da economia portuguesa que levem o Banco de Portugal a rever as previsões actuais, incluídas nas que o BCE divulgou em 6 de Setembro.

A regulação e supervisão de instituições e mercados financeiros

É preciso repensar os sistemas de regulação e supervisão de instituições e mercados financeiros. Isso pode envolver aspectos como o papel das agências de rating; as normas sobre a transparência de divulgação de exposições de vários tipos de instituições, incluindo hedge-funds e outros veículos financeiros (SIV - structured investment vehicles); os regulamentos sobre exigência de rácios de capital; as regras sobre a comercialização de produtos financeiros, de forma a torná-los menos complexos e opacos junto de clientes e investidores, etc.
A actual situação revelou também que muito se espera da intervenção dos Bancos Centrais, mas estes, para desempenharem a sua missão de normalizar o funcionamento dos mercados, sem compensar os que cometeram excessos, têm de ter acesso fácil e imediato à informação sobre a situação das instituições financeiras, o que justifica que estejam envolvidos ou sejam responsáveis directos pela respectiva supervisão. Houve países que evoluíram recentemente em sentido contrário sem vantagem aparente. Em resumo, haverá muita coisa a repensar serenamente sobre regulação e supervisão uma vez passada esta turbulência.

13 Setembro 2007